As Itacoatiaras de Balduíno
O Tribunal de Contas do Estado da Paraíba perpetua a reprodução em madeira da “Pedra do Ingá”, trabalho da paixão de Balduíno Lélis que busca despertar o ânimo do visitante para o significado das famosas Itacoatiaras.
A obra, concebida em 1979, por iniciativa do então Conselheiro Presidente Luiz Nunes Alves, ficará, a partir deste ano de 2022, exposta permanentemente no saguão do prédio principal da Corte, aos olhos e ao deleite de toda a sociedade.
A produção artística retrata a mais importante gravura rupestre do Brasil, nunca decifrada. As explicações, para alguns, vão desde a presença de fenícios à de extraterrestres. Para outros, têm origem na escrita da Ilha de Páscoa, no Pacífico. Todas as versões, até o presente, sem fundamentação científica.
O que exige aceitar é que a criatura pré-histórica ou o conjunto delas que gravou na rocha, com a homogeneidade de um conjunto gráfico e pelas técnicas empregadas, já se exprimia como ser pré-cultural. Já observava certa ordem na elaboração dos seus sinais, dando parte de uma mensagem indecifrável dessa riqueza milenar como quem busca, na visão infinitamente remota dos que a talharam, uma resposta para o homem de hoje, muito mais cruel em suas ambições, muito mais adverso em seu desenvolvimento.
Tombada pelo IPHAN, mesmo assim a sua proteção tem sido precária. Referência maior de arqueólogos e desse âmbito de estudos e pesquisas, nunca se impusera aos cuidados de lideranças e ao próprio meio cultural da Paraíba como o monumento universalmente surpreendente. Sua divulgação ou promoção se restringia, até o último quartel do século passado, ao especialíssimo campo dos arqueólogos, quase sempre fora da Paraíba. E mesmo internamente era escassa a presença de estudos ou de apreciações no acervo de publicações vinculadas à nossa rica história.
Oriundo dessas pedras, expelido dos lajedos ferventes de Taperoá, surgiu Balduíno Lélis de Farias para vir florar o cardeiro da inteligência e da vontade no Cariri paraibano. É com ele, um autodidata de tempo integral e de febre empreendedora que as itacoatiaras se arrancam do espaço restrito aos estudos especializados para se tornarem patrimônio efetivamente público. Assim, Balduíno não se revelava apenas o artesão de refinamento artístico e de leituras arqueológicas, antropológicas e historiográficas. Era o empreendedorismo de iniciativa particular que se antecipava ao esforço de restauração do patrimônio histórico, com motivação e repercussão além dos círculos culturais.
A história cultural da Paraíba registra poucos promotores e pesquisadores dos seus bens e valores culturais e artísticos com a dedicação de Balduíno Lélis, que chegou a se recolher a sua Taperoá para fundar a Universidade Leiga do Trabalho, aberta às vocações presas à vida da região.
Por sua rica trajetória e vários feitos, mereceu inúmeras homenagens, entre elas a de Honra ao Mérito nas comemorações do IV Centenário da Paraíba e a Medalha de Rui Barbosa durante Congresso dos Tribunais de Contas do Brasil.
A obra de Balduíno, assim como a “Pedra do Ingá”, evidencia que a arte e a expressão do homem resistem à névoa do tempo.
Texto: Gonzaga Rodrigues (Escritor, cronista e jornalista).
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Balduíno Lélis: O guardador de vidas e de sonhos
Na Paraíba, com raras exceções, nenhuma pessoa venerou a cultura e a arte com tanta dedicação, ou mais, do que Balduíno Lélis de Farias, sem ambicionar cargos públicos ou posições requintadas nos salões da nobreza, mesmo quando oportunidades surgiram.
Recolheu para si a missão de pesquisar, documentar e preparar os espaços para guardar as pegadas da civilização na História da Paraíba. Tudo o que fez durante sua vida foi com a alma da Paraíba, o homem arrastando a história do povo para que, no futuro, as gerações pudessem conhecer os rastros de seus ancestrais.
Quando o Sertão ardia ao sol que tostava a vegetação, secando os açudes e córregos no ano de 1930, Balduíno Lélis de Farias nasceu. Taperoá ardia como coivara, a seca ampliava o ambiente esturricado das margens dos riachos e baixios, onde o gado e as cabras catavam o que estava de babugem que mais parecia gravetos secos. Na Serra do Pico, as malacachetas reluziam à luz do meio-dia com tanta intensidade que se confundiam com os enfeites dos chapéus de couro dos cangaceiros que circulavam em bandos naquela região.
No ano em que Balduíno nasceu, aconteceram cenas de sangue na política da Paraíba, com perseguição e morte de famílias de políticos em todo o Estado.
O menino Balduíno escutava as conversas sobre todos os acontecimentos políticos envolvendo familiares bem próximos e as façanhas do mais famoso cangaceiro – Virgulino Ferreira da Silva, Lampião – que à época aterrorizava o Sertão.
As dificuldades de acesso ao ensino não permitiram que ele concluísse apenas o curso primário, na escola de Dona Antônia Lélis, na sua cidade natal. Entretanto, tornou-se autodidata e consolidou sua presença nos meios culturais da Paraíba. Dedicando grande parte de sua vida as pesquisas e à leitura na busca de novos conhecimentos, aprendeu a falar espanhol, francês e italiano e merrime (Kanella), língua indígena que usava para conversação, quando necessário.
Cedo, descobriu a paixão pela arte e, a mesma arte que percebia espalhada pelo lugar onde morava e que criou nele a vontade de pesquisar e documentar a cultura do povo. Dedicou sua vida a descobrir e preservar a cultura nas suas mais diferentes manifestações e conhecimentos, desde o folclore, a arqueologia e a paleontologia, de modo a ajudar na preservação da memória do povo nordestino.
Montou museus pelo Nordeste e, de modo especial, na Paraíba. Recebeu a alcunha de “Senhor dos Museus”, tanta sua dedicação a instalar esses espaços de preservação da memória.
Destacado pesquisador cultural e folclorista, amigo de Ariano Suassuna, seu conterrâneo, também tinha proximidade com Glauber Rocha, José Lins do Rego, Câmara Cascudo, Luiz Almeida, Assis Chateaubriand e José Américo de Almeida que, em 1957, nomeou-o Promotor Adjunto da Comarca de Taperoá.
No ano de 1969, ele recebeu menções honrosas e voto de louvor da Assembleia Legislava da Paraíba, pela colaboração a cultura da Paraíba. Também recebeu Honra ao Mérito no IV Centenário Paraíba, no ano de 1985. Foi homenageado na VI Noite da Cultura paraibana, e foi condecorado com a Medalha Rui Barbosa do Congresso dos Tribunais de Contas do Brasil.
“Um museu não é um ambiente com um monte de coisas velhas. Pelo contrário: o museu representa a história viva de um povo”, esclareceu Balduíno, certa vez. Citado pela Enciclopédia Britânica pela relevância das pesquisas realizadas sobre a cultura pré-histórica nos sítios arqueológicos da Itacoatiara do Ingá (PB), mas isso não o envaidece.
Ele tem fascinação pela Pedra do Ingá, que considera um dos maiores patrimônio naturais da Paraíba. Atendendo a uma solicitação da diretoria do Banco do Estado da Paraíba, na década de 1970, montou uma réplica da Pedra do Ingá que foi colocada na agência central do banco.
Como professor convidado, deu aulas na Universidade Federal da Paraíba e Universidade Federal do Ceará, e na Universidade de Tóquio, no Japão, aonde ministrou palestras sobre baleias pleistocênicas.
Múltiplas faces
Balduíno também trabalhou como ator de cinema e teatro, além de escrever romance, contos e exercer as artes plásticas. Sempre presente aos movimentos culturais, mesmo que não tenha publicado, Balduíno tem uma produção literária invejável, como romancista e contista.
O romance A Bota Maldita e os contos regionais ‘O conto dos contos de réis’ e ‘O causo do Capitão Tranquilino e o Padre Ananias’ são títulos que chamam a atenção pela maneira como abordam os temas.
Como ator, atuou no primeiro filme longa-metragem rodado na Paraíba, Salário da Morte, uma produção de José Bezerra Filho e Waldemar José Solha, com direção de Linduarte Noronha.
Também foi dele o papel do Capitão Antônio Silvino no filme Menino de Engenho uma produção de Glauber Rocha e Walter Lima Jr, personagem que voltou a interpretar no filme Fogo Morto, de 1976, com direção de Marcos Farias.
As mais recentes atuações na sétima arte foram como São Gregório no filme São Gerônimo, de João Bressane; o Coronel Bezerra na minissérie o Auto da Compadecida (gravada em Taperoá) e o pai de Padre Rolim no longa Um Sonho de Inacim – O aprendiz de Padre Rolim, direção de Eliézer Rolim.
O jornalista Wills Leal, falecido em maio deste ano, escreveu sobre as inquietações de Balduíno, este homem do Sertão que foi um fazedor de sonhos. Para ele, Baluíno foi um “homem dos sete instrumentos” e um homem de praticidade, telúrico e regional, traços marcantes no pesquisador-criador de Taperoá.
“Tem sido assim: a natureza é seu mundo, Taperoá, sua pátria. Faça chuva ou faça sol, um ‘beduíno errante’. Em tudo e por tudo, um permanente fazer de cultura”, escreveu Wills.
Uma das várias facetas dele foi tentar montar a Cidade Cinematográfica de São Saruê, uma cidade para cinema exaltando uma terra onde todos vivem felizes, um mundo de encantamento e de farturas, como narra o poema caboclo de nossa literatura de cordel, a partir de sua afinidade com os sonhos, os encantamentos do Sertão.
O escritor, poeta, ator e pintor Waldemar José Solha, que trabalhou com Balduíno Lélis em alguns filmes, a começar por Salário da Morte, recordou que quando a equipe estava nas filmagens na cidade de Pombal, em 1969: “O diretor Linduarte Noronha, ao lado da câmara, grita: -Ação!. Baldúino Lélis – elegantíssimo no papel de juiz em O Salário da Morte – sai detrás da torre do relógio da Rua Nova, em Pombal, atravessa a larga avenida, fumando, pasta 007 na mão esquerda, encaminha-se para adro da Igreja do Rosário, em cujo meio-fio está sentada uma velha mendiga – elemento real no universo ficcional do filme – e, de repente, mal ele pisa na área, o tiro! Balduíno põe as mãos no peito, soltando a pasta negra e o cigarro, desaba, a piola caindo e rolando pelo chão, rolando, rolando…, indo parar ao lado da esmoler, que, tranquilamente, estira a mão, apanha- -a… e extrai dela uma vigoroso tragada! – Corta!, Linduarte comanda, em meio a risadeira de todos nós, atrás dele – Corta, corta, corta!!!”
Universidade Leiga do Trabalho: Guardiões da Memória
Pensando na juventude que não tinha perspectiva de se profissionalizar em uma atividade, e diante do êxodo nordestino, em 1987 Balduíno Lélis criou a Universidade Leiga do Trabalho (ULT), na cidade de Taperoá. Lá, os jovens aprendiam uma atividade profissional, que é repassada de uma geração para outra, pensando no momento atual e pensando no futuro.
Sempre foi sua preocupação, contribuir para que os jovens pudessem ter uma profissão. “Nessa Universidade, os ofícios eram repassados de uma geração para outra e garantindo que a cultura do fazer de hoje e ontem possam acontecer no futuro”, comentou. A ULT é reconhecida pelo Ministério da Cultura como Pontão de Cultura que capacita e forma os jovens como “Guardiões da Memória”.
A Universidade Leiga do Trabalho é uma instituição sem fins lucrativos que atuou sem recursos públicos. Com a ajuda de professores voluntários e instituições correlatas, formou 586 alunos que se tornaram capazes para exercer uma profissão nas cidades onde residem.
Em Taperoá, três casas foram construídas como resultado dos cursos oferecidos aos alunos. Estes fizeram os tijolos, telhas e esquadrias, num espaço localizado no Sítio Quixaba, em Taperoá.
Para Balduíno, foi um trabalho que deu bons resultados porque teve por finalidade fixar o homem a terra, o que sempre foi o maior objetivo. “É como dizem os matutos da minha terra: quem casa quer casa. E por que não ensinar a fazê-la?”, comentou certa vez.
Afora o curso de capacitação para construção da casa própria, também tem o Memorial das Riquezas da Paraíba, que tem os espaços da Sala da Imprensa Luiz Gonzaga Rodrigues e da Sala do Livro Escritor José Loureiro Lopez. Conta com a Sala de Convenções Governador Juarez Farias; o Parque da Luz e da Força Governador João Agripino Filho, Praça da Liberdade Governador Dorgival Terceiro Neto, Teatro Escola Fernando Teixeira e da Fonte da Vida Poeta Ronaldo Cunha Lima.
Também foi inaugurado o Gabinete de Estudos do Semiárido Professor José Augusto Trindade e o Auditório de Ciências do Homem Professor Ricardo Maia, “por quem eu tenho um carinho especial pelo feito da realização de um sonho que é a universidade”, afirmou.
Balduíno sente orgulho da Universidade Leiga do Trabalho quando alguns dos resultados: os cinco empresários bem sucedidos de Taperoá passaram pelos ensinamentos da ULT. “Isso me deixa muito orgulhoso, porque eu colaborei com a história dessas pessoas e eles sabem reconhecer o valor do aprendizado, tanto que investem para que outras pessoas possam aprender na ULT”, comentou. “O que falta ao nordestino é educação para viver no Semiárido nordestino, que é o maior, mais populoso e mais chuvoso Semiárido do mundo”, entende.
Recorda que boa parte dos irrigantes, que vivem às margens do Rio São Francisco, em Pernambuco, saiu da universidade criada por ele, onde aprenderam o ofício da irrigação com pouco desperdício de água a partir das ideias apresentadas dentro da ULT.
Na universidade, Balduíno apresentava aos alunos que a sazonalidade do trabalho é a responsável pela dificuldade que o homem nordestino está submetido. “No Semiárido se trabalha três meses e nos nove restantes o homem não tem o que fazer, não tem nenhuma ocupação. A nossa meta é fazer com que o homem tenha a ocupação no roçado durante o inverno e outra ocupação durante o período da estiagem”, lembra ele.
A onça pintada – História vivida e contada tantas vezes, recontada a boca larga, sem pôr nem tirar uma vírgula, porque o protagonista foi Balduíno Lélis. O conterrâneo, Dorgival Terceiro Neto, era prefeito da cidade de João Pessoa e desejava ter uma onça como atração no Parque Arruda Câmara. Balduíno foi busca-la no Maranhão.
Munido de bornal no meio do mato, armou uma arapuca, colocou dentro um bodinho, ficando três dias amoitados com uns caboclos da região três dias esperando a presa. Capturada, acomodaram a pintada na mala de um Opala e ele voltou a João Pessoa com o animal.
Chegando, parou o veículo em frente da prefeitura, adentrou de supetão no gabinete do prefeito e, antes de qualquer reação, foi logo dizendo: – Seu animal está aí fora…
Em homenagem a Balduíno Lélis, a onça passou a se chamar Badu.
TEXTO:
José Nunes da Costa é jornalista, escritor e diácono. É sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano (IHGP) e autor, entre outras obras, de Lira dos 40 anos (1994, poesias), Ariano Suassuna (2002, biografia), Ascendino Leite – vida e obra (2005, estudo crítico, em parceria com Angélica Nunes) e O cajueiro e os cronistas (2017, crônicas). Mora em João Pessoa (PB).
(Correio das Artes – A União – João Pessoa, junho 2020)
Balduíno Lélis, morreu em 21 de dezembro de 2020, aos 88 anos de idade. Balduíno era autodidata e dedicou praticamente toda a sua vida à arqueologia e ao trabalho com museus, que lhe rendeu o apelido de “O Senhor dos Museus”.